Livro a Pedra Lascada de Salomão Lopes
A seção “em gotas” é como passamos a denominar o espaço cultural através do qual divulgaremos aos nossos leitores matérias variadas, de cunho especialmente literário.
A partir de seleções de textos, estaremos, doravante, focalizando o trabalho de alguns autores, notadamente os vinculados a temas itapipoquenses.
Abre a série em comento a “Pedra Lascada”. Trata-se de obra produzida pelo conterrâneo Salomão Lopes Teixeira, publicada recentemente pela Câmara Brasileira de Jovens Escritores, propiciando uma noção histórica e antropológica de nossa terra, no gênero romance.
O presente quadro, além de divulgar para pessoas de fora do nosso município o conhecimento desse evento (em face da universalidade projetada pela internet), conduzirá os estudantes e outros interessados locais, que já leram o livro, ao entendimento pontual de capítulos, mercê de uma leitura “sem cansaço”, porquanto processada em blocos a serem quinzenalmente “liberados”.
Desta feita, a parte que destacamos foi extraída do primeiro capítulo, o que dá uma noção da origem da nossa “Pedra Lascada”.
Ao depois, “em gotas” iremos recortando e trazendo a lume os trechos que compõem o desenvolvimento e os momentos conclusivos dessa criação literária.
Primeiro capítulo
Foi há muito tempo...
Numa encosta de serra, separada do Atlântico por aproximadamente dez léguas, dois homens dialogam. O mais velho é Taca; o outro, Javani. Empreendem mais uma caçada, dando curso a tantas outras que já efetuaram na região.
O crepúsculo acabara de descer sobre a vegetação riquíssima de espécies. O tingir da noite ia pintando de tons tranqüilos e misteriosos o centro da mata.
Não eram bárbaros como seus antigos ancestrais. A origem dos dois denotava a presença de surpreendentes e peculiares eventos. Taca, nesse momento, dizia-se filho de uma conjugação de raças geradas a partir de um naufrágio ocorrido na costa dessa aldeia. Seu pai, por milagre, saíra ileso de nau destroçada por uma baleia gigante que devorara aos demais tripulantes. Salvo do infortúnio, viera ter à região ora palmilhada e onde, abrigado entre autóctones, formara laços de sangue e convivência.
O estranho ficara conhecido como o Náufrago da Baleia, e o litoral onde fora jogado após o episódio recebeu por ele, como por outros que vieram a saber de sua história, a designação de Praia da Baleia.
O tal estranho teria polinizado quase toda a floração humana encontrada sob os céus dessa imensa aldeia. E tudo teria começado quando o navegante, encantado com rota esboçada para o ventre da América do Sul, sonhara descobrir tesouros que só podiam existir a mancheias em tão vistosas paragens repletas de águas cristalinas e matas verdes, embora algumas entrecortadas de caatingas e cerrados.
(...)
Uma das ameríndias que o extenuaram foi Bindoca, a mãe de Taca. Informações davam conta de tratar-se de um ser fantástico, que misturava a cor de índia com o negro provindo das veias de gerações semiescas. Seu romance com o Náufrago da Baleia só podia, pois, impregnar, como impregnou, o sangue de sua descendência de coloração ímpar, integrada do preto, do branco, do amarelo e de toda a miscigenação a decorrer desse formidável enlace.
Bindoca teve outro filho com o forasteiro, e a ele deram o nome de Mocotongo. Em seguida a esse fato, tanto o estranho quanto Bindoca desapareceram dessas terras. (...)
As águas das grotas saíam de estreitas passagens de pedras a correr como leite que ia alimentar ervas e arbustos que as esperavam sedentas. Cicios de grilos e pirilampos cortavam o ambiente e havia rosais se preparando para bailes e noivados ocultos entre pecíolos e verticilos.
(...)
Chegaram a um ponto da montanha que denominaram Balança, por ser composto, além da vereda central, provinda da oca de Taca, por mais duas, à feição de dois braços, um estendido para o oeste; o outro para o leste, embora em declinação. (...)
À porção de terras que ficava para o lado nascente da Balança, como a lhe formar um braço, os caçadores chamavam Jacu, uma homenagem ao animal que em quantidade fervilhava para aquele lado.
As imagens finais do sofrimento do cão foram sentidas profundamente (...) Passou a ser chamado, na agonia do episódio, o Crispim dos caçadores.
(...)
Os homens ruminavam esses pensamentos quando, de súbito, à frente dos dois, oh!... céus!... Uma fascinação?!... Uma deusa?!... Uma assombração?!... Era preciso parar. O coração o exigia. Anjo, demônio, o que quer que fosse, resplandecia ali, no meio da vereda, a poucos metros...
Como distinguir ou entender o que fosse aquilo!? Era uma mulher a cujos acenos o olhar do espectador enlouquecia de volúpia, não se contendo de febris desejos. Corpo ardente de encantos, desafiava a imaginação do mais pudorado dos mortais. Como não arder naquele fogo? Ou não estalar os tições de chamas que alimentam o vulcão de um homem, ainda que simples caçador noturno?
Ali, à frente dos dois... Desavergonhadamente nua... Seios arfando, tais dois pombos de neve em baile na montanha. Talvez não fosse uma mulher, mas uma tempestade feminina! Mais do que uma alma, aquilo era um pecado hábil a estraçalhar as entranhas, carnes e nervos de qualquer selvagem! (...)
A composição da formosura, a sedução do olhar, o odor que trescalava, tudo a envolvia de inefável expressão a atrair seu observador, que poderia por ela fortalecer todos os sentidos a ponto de enfrentar, desarmado e sozinho, a lança do inimigo na guerra.
O caçador mais novo desmaiou. Não resistira à inundação do choque tomado.
O caçador mais velho tenta desertar do transe e olha para o companheiro. Pega-lhe o pulso, ausculta-lhe o coração. Percebe, enfim, que a caçada da noite pregara mais uma peça. Javani entregara naquele momento o espírito.
Nem termina Taca de examinar o amigo e se lembra de voltar os olhos para a mulher.
Em vão.
Para seu espanto, não vê mulher. Em lugar dela, uma imensa pedra, ou uma Ita – conforme lhe apraz chamar aquele ser – preenche-lhe toda a largura do caminho, em gestos anunciadores de mudanças para a existência do caçador e a de toda uma gente.
(A Pedra Lascada, Salomão Lopes, 1ª ed., Rio de Janeiro, 2008, extratos pp.
Forte abraço!
Salomão.