Islândia foi a primeira vítima da crise financeira internacional.
Quebra de bancos gerou filas nas agências e corrida aos supermercados.
Do inglês ("Iceland"), Islândia se traduz literalmente como “Terra do Gelo”. Mas, nas últimas semanas, o país se viu no centro de uma verdadeira fogueira financeira que causou o derretimento de sua até então invejável economia, causado pela quebra dos principais bancos do país.
Editoria de Arte / G1
Essa ilha localizada no Atlântico Norte, com pouco mais de 300 mil habitantes, ganhou as manchetes dos maiores jornais globais como a primeira vítima “real” da crise que se iniciou no mercado imobiliário dos EUA e se espalhou pelo mundo com a falência do banco Lehman Brothers, em setembro.
Em meio à perplexidade de uma população que assistiu ao colapso, praticamente da noite para o dia, de algumas de suas instituições mais confiáveis, alguns brasileiros que trabalham ou estudam na ilha conversaram com o G1 sobre a situação da Islândia.
São relatos que mostram a frustação e a revolta de um país que antes era apontado como modelo de sucesso do liberalismo mundial e que se tornou motivo de piada na comunidade internacional – a Islândia chegou a ser “colocada à venda” no site de leilões eBay, por US$ 0,99.
(Continue a ler esta reportagem após o infográfico)
Uma das testemunhas do "derretimento" islandês é o analista de sistemas mineiro Pedro Ziviani, que há dois anos mora na capital Reikjavík.
Segundo ele, os primeiros efeitos da crise já eram sentidos antes da quebra dos bancos, com a crescente desvalorização da moeda local, a coroa islandesa. Como no país quase tudo é importado, os preços subiram ao longo do ano. Segundo ele, o leite chegou a aumentar 10% em uma semana.
A situação explodiu com o colapso dos bancos, no início de outubro. “Havia um sentimento de que a crise era séria, mas ninguém esperava o colapso que aconteceu”, diz ele.
É a mesma opinião do estudante André Motta Vieira, que está no país fazendo um intercâmbio. “Estava tudo normal, a crise era coisa dos Estados Unidos. De repente, o presidente apareceu na TV anunciando que o governo ia comprar os bancos”, relata.
O resultado é “um país em sentimento de ressaca". "É como uma festa que era só dos banqueiros, para a qual ninguém foi convidado, mas todos têm que sofrer a ressaca”, relata Ziviani.
Carrinhos cheios
Segundo os relatos dos brasileiros, logo após o anúncio houve um certo pânico entre a população, até porque o governo proibiu todos os tipos de transação com moeda estrangeira.
“Houve uma dedução de que começaria a faltar produtos. A maior rede de supermercados daqui fez uma declaração pública de que não conseguia importar nada, porque nenhum país do exterior aceita mais moeda islandesa, e eles não sabiam por quanto tempo mais conseguiriam manter os produtos nas prateleiras”, afirma o analista de sistemas.
O resultado? “Todo mundo enchia os carrinhos de supermercados”. Mas Ziviani garante que, apesar do susto, não chegou a ocorrer falta de produtos nas prateleiras. “Já ouvi algumas citações engraçadas por aqui, de gente preocupada que vai faltar alguma marca específica de chocolate."
O analista de sistemas Pedro Ziviani na Islândia: "medo" da falta de chocolate (foto: arquivo pessoal)
Os bancos não escaparam ilesos. Nos dias de intervalo entre a quebra das instituições e o anúncio de que o governo iria garantir os depósitos e as poupanças, as agências registraram filas de pessoas querendo “limpar a conta”, com medo de ficar sem dinheiro.
Dívidas e mais dívidas
Com o passar dos dias, a preocupação mudou de foco. De acordo com Ziviani, um terço da população tem dívida em moeda estrangeira, que era fartamente oferecida quando a divisa local estava valorizada.
O problema é que a coroa teve seu valor reduzido em mais de 300% frente ao dólar, o que fez com que essas dívidas disparassem. “Existe gente que tem que pagar quatro vezes o valor do financiamento que pagava antes”, diz.
Já Vieira conta que era muito comum as pessoas pegarem empréstimo nos bancos, pagando a perder de vista. "Na minha escola, tem gente de 17 anos com carro de luxo”. Mas, com a desvalorização, os tempos agora são outros: “Tenho uma colega que comprou uma TV de plasma como presente de aniversário para o pai, e agora não tem como pagar."
O estudante André Motta Vieira (esq.) às margens de lago em Reykjavík (foto: arquivo pessoal)
Com o sistema financeiro de pernas para o ar, a população busca refúgio em investimentos alternativos, como os relógios da marca Rolex. Único distribuidor da marca no país, Frank Michelsen afirma que registrou uma "alta significativa" das vendas.
"Os clientes querem algo que possam ter nas mãos. Não têm confiança nos números de seus computadores porque viram estes números virar fumaça", declarou Michelsen à agência de notícias France Presse.
Incerteza e êxodo
Segundo Ziviani, o principal sentimento atualmente entre a população é o de incerteza. “Todo mundo sabe que vai ter conseqüências sérias com a crise, mas ninguém sabe o quê. Tem muito boato sobre quais empresas vão quebrar e quais vão sobreviver."
A conseqüencia dessa incerteza é o êxodo. “Tem muito estrangeiro deixando o país. A desvalorização da moeda foi tão absurda que deixou de valer a pena ficar por aqui por razões econômicas." Segundo ele, um dos exemplos dessa tendência é a comunidade polonesa existente na ilha. “Hoje em dia se ganha mais na Polônia do que aqui”, compara.
Confira no vídeo ao lado reportagem sobre a crise na Islândia
E a recuperação não deve ser rápida: “Tenho um amigo que trabalha na maior empresa de transporte marítimo daqui. Ele me disse que tudo o que tem feito nos últimos dias é despachar carro para fora do país. As concessionárias estão devolvendo os carros para os fabricantes, porque não têm a menor chance de vender por aqui."
Desconto nos políticos
Como em outros lugares do mundo, a "raiva" da população acaba descontada nos políticos. Nas últimas semanas, começaram a acontecer passeatas de protesto, algo inédito naquela parte do mundo. A última reuniu 2 mil pessoas. Pode parecer pouco, mas representa 1% da população da capital. É como se 100 mil pessoas fizessem um protesto em São Paulo.
E as manifestações têm até hora marcada com antecedência: “Acontecem sempre aos sábados, às 15h. São manifestações em frente ao Parlamento, pedindo a renúncia do primeiro-ministro, do presidente do Banco Central e a entrada do país na União Européia”, relata o mineiro.
Novela mexicana
E por falar no presidente do BC da Islância, David Oddsson – ex-primeiro ministro e atual líder da autoridade monetária – se transformou numa das figuras mais impopulares do país com a crise, segundo narra Ziviani.
E com toques de novela mexicana: “Existe uma teoria da conspiração aqui que afirma que o presidente do BC deixou um dos bancos quebrar e depois o nacionalizou porque era inimigo político jurado do dono do banco”. Essa primeira quebra teria gerado um “efeito dominó”, contaminado as demais instituições financeiras e jogado o país no caos.
Uma consulta à imprensa britânica mostra que a teoria pode não ser tão maluca assim. De acordo com diversas reportagens publicadas ao longo do ano, Oddsson mantém um longo desentendimento com o milionário local Jón Ásgeir Jóhannesson, antigo dono do banco Glitnir.
Durante um processo que o milionário sofria na Justiça, Oddsson o acusou de tentar lhe subornar com 2,5 milhões de euros. Ásgeir foi condenado. Mais tarde, ele deu o troco: classificou a nacionalização do Glitnir de “o maior assalto à banco da história islandesa”.
Ficha suja
Outro político com a “ficha suja” na Islândia é o primeiro-ministro inglês, Gordon Brown. O mandatário britânico congelou os ativos de bancos da Islândia em território britânico – sob alegação de que o governo islandês se recusou a garantir os depósitos nessas unidades – usando uma lei criada originariamente para impedir a movimentação bancária de grupos terroristas.
Segundo o estudante Vieira, a situação gerou revolta na Islândia. Virou febre no país um site em que habitantes da ilha protestam contra Gordon Brown e postam fotos segurando cartazes com a frase “não somos terroristas”.
“Todo mundo começou a postar imagens. Na minha escola, todos ficavam se cobrando para avisarem os pais e parentes para colaborar”, diz ele. Atualmente, o site já possui mais de 70 mil adesões – quase um quarto da população do país.
Futuro sem brilho
Enquanto isso, o futuro parece não ser nada brilhante para a economia da ilha. Além das projeções oficiais pouco animadoras – um encolhimento de 10% no tamanho do Produto interno Bruto (PIB) e uma inflação de 30% anual –, existe o medo de uma quebradeira de empresas, que poderia gerar desemprego em massa.
Segundo o analista de sistemas Ziviani, quando os bancos quebraram, quase todas as empresas balançaram, pois tinham investimentos nas instituições. “O país é pequeno, mas as empresas são grandes. E elas investem uma nas outras, é uma teia de investimentos. É como um castelo de cartas: se cai uma, caem todas".
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